Nos três primeiros anos do governo Bolsonaro, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) usou um programa secreto para monitorar a localização de cidadãos a partir de dados do celular. Chamada FirstMile, a ferramenta permitia, sem qualquer protocolo oficial, identificar a localização aproximada de uma determinada pessoa, bastando para isso digitar o número de seu aparelho celular.
As informações foram divulgadas nesta terça-feira (14/03) pelo jornal O Globo. O sistema se alimentava do fluxo de informações gerado pela transferência de dados de redes 2G, 3G e 4G entre celulares e torres de telecomunicações instaladas em diferentes regiões do país. De acordo com a reportagem, bastava digitar o número de um contato telefônico no programa para acompanhar num mapa a última localização conhecida do dono do aparelho.
Desenvolvido pela empresa israelense Cognyte (ex-Verint), o sistema permitiu acompanhar os passos de até 10 mil proprietários de celulares a cada 12 meses, com direito a histórico de deslocamentos e até “alertas em tempo real” de movimentações de um alvo em diferentes endereços.
O software foi comprado por R$ 5,7 milhões da firma de Israel, com dispensa de licitação, no final do governo Michel Temer (MDB).
Confirmada pela Abin, a prática levantou questionamentos, inclusive entre os próprios integrantes do órgão já que a Abin não possui autorização legal para acessar dados privados de cidadãos. Há relatos de utilização do sistema até mesmo contra funcionários da própria agência.
Um integrante do alto escalão da Abin afirmou ao O Globo que o sistema podia ser usado “sem controle” e que não era possível identificar acessos indevidos. Segundo relatos de membros a Abin, o mecanismo era usado sem necessidade de registro sobre quais pesquisas eram realizadas.
Ex-diretor da Abin defende uso da ferramenta
Procurada, a Abin confirmou o uso do software para monitorar deslocamentos na população, mas se absteve de fornecer mais detalhes sobre o caso, alegando sigilo contratual.
Em nota, a agência de inteligência informou apenas que o contrato referente ao uso do programa teve início em 26 de dezembro de 2018 – no final do governo Michel Temer – e foi encerrado em 8 de maio de 2021.
“A solução tecnológica em questão não está mais em uso na Abin desde então. Atualmente, a Agência está em processo de aperfeiçoamento e revisão de seus normativos internos, em consonância com o interesse público e o compromisso com o Estado Democrático de Direito”, conclui a nota.
Por meio das redes sociais, o deputado federal e diretor da Abin no governo passado, Alexandre Ramagem, defendeu o uso do programa e negou que a prática tenha configurado irregularidade.
“Em 2019, ao assumir o órgão, procedemos verificação formal do amparo legal de todos os contratos. Para essa ferramenta, instauramos ainda correição específica para afirmar a regular utilização dentro da legalidade pelos seus administradores, cumprindo transparência e austeridade”, afirmou Ramagem.
Abertura de inquérito pela PF
Diante da repercussão do caso, o ministro da Justiça, Flávio Dino, enviou um ofício à Polícia Federal (PF) na noite de quarta-feira, solicitando a abertura de um inquérito para investigar as suspeitas de espionagem da população.
“A Abin faz inteligência de Estado. A Abin não investiga pessoas, juridicamente falando. Então, se há um rastreamento seu ou de qualquer cidadão, ou meu, é claro que isso não é missão da Abin. Quem investiga no Brasil são as polícias judiciárias, com acompanhamento do Ministério Público e Poder Judiciário”, disse Dino, em entrevista à CNN Brasil.
Também na quarta, o líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), disse que avalia apresentar um requerimento de criação de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para apurar o caso.