Na capital do Uruguai, o primeiro país do mundo a consagrar o direito à água potável em sua Constituição, em 2004, esse bem precioso está se tornando escasso. Nos últimos anos, o fenômeno La Niña vem transformando o Uruguai, e sobretudo Montevidéu, cada vez mais num deserto, e a cidade vive agora sua pior seca em mais de sete décadas.
“A seca pela qual o Uruguai está passando é totalmente excepcional. Tivemos dois anos de seca relativamente normal, ou seja, com índices de precipitação baixos, mas dentro do que normalmente ocorre em situações do tipo. Mas desde o fim do ano passado, vivemos algo realmente excepcional”, diz a bióloga e pesquisadora uruguaia Mariana Meerhoff. “Nunca tivemos tão pouca chuva.”
Segundo Meerhoff, a situação em Montevidéu é particularmente dramática pelo fato de a demanda por água ser tão alta. A região metropolitana da capital abriga mais da metade dos 3,4 milhões de habitantes do país.
Principal fonte de abastecimento da capital, o reservatório de Paso Severino, localizado a cerca de 70 quilômetros da cidade e com capacidade para 67 milhões de metros cúbicos de água, está apenas 1,8% cheio, anunciou o governo no início desta semana.
Emergência hídrica e corrida aos supermercados
O presidente uruguaio, Luis Lacalle Pou, decretou emergência hídrica na Região Metropolitana de Montevidéu. A medida prevê isenção de impostos para água mineral engarrafada e que a população mais pobre, particularmente afetada pela crise, receba dois litros por dia gratuitamente.
As garrafas de seis litros de água potável, trazidas também de outras partes do país, são cobiçadas nos supermercados da capital. Atualmente, são vendidas três vezes mais garrafas de água do que o normal, e as compras em massa lembram os primórdios da pandemia de covid-19.
Apesar de a ciência vir alertando sobre o problema de água potável no Uruguai há quase três décadas, “não há um reconhecimento [por parte do governo] da gravidade da situação”, critica Meerhoff. “Crises hídricas como esta vão ser cada vez mais frequentes e mais graves”, alerta.
Na cidade que costumava se gabar de ter uma das melhores qualidades de água da América do Sul, pesquisas mostram que atualmente menos da metade da população bebe água da torneira, que passou a ter um gosto salgado.
O pouco que restou no reservatório que abastece Montevidéu foi misturado à água do Rio da Prata, contaminada por pesticidas. Além disso, a água se mistura à do mar no estuário dos rios da Prata e Paraná. O resultado é um aumento dos teores de sódio e cloreto na água da torneira, para muito acima dos limites estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Interesse da indústria à frente dos da população?
A crise hídrica se transformou numa crise política no Uruguai, com uma série de protestos contra o governo nas ruas.
“Não é uma seca, é um saque”, protesta a organização ambiental Redes – Amigos de la Tierra. A ONG aponta que fábricas de celulose, empresas de cultivo de arroz e produtores de soja usam enormes quantidades de água sem tem que pagar nada por isso.
“Cerca de 80% da água doce vai para a agricultura e a indústria florestal. Temos, portanto, um consumo de água muito importante por atividades que não são o consumo humano ou a natureza”, aponta Meerhoff.
Falta de estratégia
Atualmente, hospitais e escolas de Montevidéu são abastecidos com água potável de dois poços no centro da capital, que foram perfurados rapidamente por causa da crise hídrica.
Um novo reservatório perto da cidade está em obras há seis meses. Além disso, o conserto de canos velhos e danificados, que levam ao desperdício de até metade da água que transportam, deve entrar em breve na lista de tarefas do governo.
Mas tais medidas são apenas uma gota no oceano. Assim como muitos países e cidades mundo afora, o Uruguai precisa urgentemente de uma estratégia hídrica.
“O que está acontecendo aqui em Montevidéu pode acontecer em outras cidades do mundo. Já aconteceu há alguns anos na Cidade do Cabo, na África do Sul, e em Curitiba, no Brasil, onde secas extraordinárias deixaram a população sem água potável. É muito possível que situações do tipo aconteçam em mais lugares do mundo”, afirma Meerhoff.
Fonte: DW Brasil
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