Em busca de apoio internacional ao esforço de defesa ucraniano contra a invasão russa, o presidente Volodimir Zelenski discursou na Câmara Baixa do Parlamento suíço por vídeo nesta quinta-feira (15/06), apesar da oposição do SVP, o partido populista de direita da Suíça.
“Eu sei que há uma discussão na Suíça sobre a exportação de material bélico para a proteção e defesa da Ucrânia”, declarou Zelenski. “Precisamos de armas para poder devolver a paz à Ucrânia.”
Adepta há séculos da doutrina que prega a neutralidade militar, a Suíça tem se recusado a enviar armamentos e munições a Kiev e a autorizar outros países a enviarem material bélico de fabricação suíça. Por outro lado, ao endossar sanções contra a Rússia, o país também passa o recado de que desaprova a conduta de Moscou.
Alguns políticos liberais têm pressionado pela revisão dessa postura, ao menos para permitir que armas e munições suíças compradas por outros países possam ser enviadas à Ucrânia. O esforço, até agora, tem sido em vão: uma moção parlamentar nesse sentido, baseada em uma consulta feita por Alemanha, Dinamarca, Espanha e Holanda, foi rejeitada no início deste mês.
“Nossa neutralidade está sendo violada!”, queixou-se Thomas Aeschi, membro da bancada do SVP, que detém um em cada quatro assentos no Parlamento, e autor de um requerimento que tentava barrar o discurso do presidente ucraniano. “A Ucrânia está tentando influenciar diretamente as decisões parlamentares sobre o fornecimento de armas e munições.”
Para a direita, apoiar sanções é o mesmo que se envolver na guerra
Se a revenda de armas suíças é um tabu, o mesmo não se aplica às sanções econômicas. Nesse aspecto, Berna juntou-se aos países do Ocidente em questão de dias, tão logo a Rússia deflagrou a invasão em larga escala do território ucraniano, no início de 2022, Com isso, maculou sua até então longeva reputação de centro financeiro para russos endinheirados.
O endosso às sanções econômicas, embora alvo de controvérsia política, foi possível porque foi visto como compatível com leis internacionais e, especificamente, com os regulamentos domésticos sobre neutralidade.
Um dos que discordam das sanções, Christoph Blocher, ex-líder do SVP, pediu um referendo para fixar ainda mais o princípio de neutralidade na Constituição. Ao jornal Neue Zürcher Zeitung, o político declarou em março que endossar as sanções da União Europeia era o mesmo que participar da guerra.
História da neutralidade suíça mostra que doutrina é elástica
Sob o prisma da lei internacional, o conceito de neutralidade não é sinônimo de imparcialidade. “O dever central de um estado neutro é abster-se de apoiar militarmente diferentes partes de um conflito armado internacional”, explicou Paul Seger, hoje embaixador suíço na Alemanha, em texto publicado em 2014.
Para o historiador Marco Jorio, a leitura que o SVP faz do princípio da neutralidade é falaciosa, mais fetiche do que doutrina de fato. “Essa compreensão altamente ideologizada da neutralidade tem muito pouco a ver com o conceito em sua essência”, afirma.
Jorio é autor de um livro sobre o assunto, publicado em abril sob o título Switzerland and its neutrality: A 400-year history. O pesquisador explica que a doutrina é mais flexível do que muitos creem, e que existe para servir, acima de tudo, aos interesses do pequeno país alpino de 8,8 milhões de habitantes.
Cercada por grandes poderios europeus, a Suíça abraçou a neutralidade pela primeira vez ainda no século 17, mas só adquiriu o caráter que tem nos dias de hoje com a Convenção de Haia de 1907, apesar de ter sido reformada algumas vezes desde então. Nas palavras de Jorio, a neutralidade suíça é elástica “como borracha”.
Doutrina teve pontos baixos com Alemanha nazista e apartheid na África do Sul
A Suíça não é um estado pacifista, tampouco está alheia às questões globais. O país tem Forças Armadas bem equipadas e um serviço militar obrigatório, e seus fabricantes de armas são grandes exportadoras globais e fazem negócios com países como a Alemanha, os Estados Unidos e a Arábia Saudita.
A neutralidade suíça teve pontos baixos no passado, como com a Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial e o regime de apartheid na África do Sul, mas também rendeu ao país algum prestígio como negociador diplomático – um ponto alto foram as negociações entre o então presidente norte-americano Ronald Reagan e o líder soviético Michael Gorbachev em Genebra em 1985, durante a Guerra Fria.
96% dos suíços apoiam neutralidade
Embora a alegação de neutralidade não torne um estado automaticamente moralmente superior, essa doutrina é cara aos suíços e eles a consideram parte de sua (às vezes complicada) identidade – nada menos que 96% dos suíços a apoiam e 84% a enxergam como parte indissociável da ideia de estado suíço, segundo um estudo de 2021 do Center for Security Studies da universidade ETH Zürich.
Quando a guerra na Ucrânia começou, cinco países europeus eram adeptos da neutralidade militar: Áustria, Irlanda, Finlândia, Suécia e Suíça. Enquanto muitos permanecem neutros ou não-alinhados em relação a conflitos específicos, só alguns mantiveram-se permanentemente neutros.
A Finlândia aderiu à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) este ano e a Suécia quer seguir o mesmo caminho, mas por enquanto teve sua entrada barrada por objeções da Turquia e da Hungria. Não há movimentação semelhante nos demais países, mas há debate público nesse sentido.
Mudar leis sobre empresas privadas seria saída
No caso da Suíça, Jorio diz não ver uma mudança radical no horizonte. O país não deve entrar para a Otan, e é improvável que aceite enviar armas à Ucrânia.
Mas há uma “questão quente”, aponta o historiador: a modificação das regras de revenda de armas para empresas privadas. Ele argumenta que a Suíça pode flexibilizar suas leis internas e, ao mesmo tempo, manter a neutralidade da perspectiva do direito internacional – as sanções econômicas à Rússia, diz, são uma provocação maior do que a questão da revenda de armas.
Em uma sondagem conduzida pouco depois do início da guerra, dois terços dos suíços entrevistados declararam se opor ao envio de armas à Ucrânia, embora a maioria tenha dito apoiar um envolvimento maior de seu governo com o país invadido pelos russos.
Fonte: DW Brasil