A crise migratória na Europa pelo Mar do Mediterrâneo está atingindo um dos maiores pontos da história. Conhecida por ser uma das rotas mais perigosa do mundo, muitos viajantes acabam morrendo no trajeto, enquanto outros precisam ser resgatados por organizações não-governamentais. Apenas em 2023, mais de 2 mil pessoas morreram ou desapareceram no local, ultrapassando o total contabilizado no ano passado: 1.963. Para especialistas, o cenário reflete a falta de abordagem da União Europeia no tema.
Isso porque o bloco vem colocando em prática medidas legislativas apenas em situações emergenciais, buscando soluções imediatas. As decisões são vistas como uma forma de “empurrar a crise migratória para debaixo do tapete”, uma vez que o fluxo de viajantes no Mediterrâneo é um problema antigo, que está piorando significativamente neste ano devido ao aumento de conflitos no continente africano. Além da ausência de assistência jurídica, a falta de auxílio em operações de busca e resgate aumenta o número de óbitos no mar.
“O estabelecimento de um regime de desembarque para barcos detectados no Mediterrâneo, seguido de solidariedade dos Estados e povos europeus para a realocação das pessoas, deveria ser uma prioridade para a União Europeia. A atual abordagem caso a caso em situações de naufrágio para lidar com as travessias na rota do Mediterrâneo não está em conformidade com as obrigações internacionais”, avalia Juliana Hack, coordenadora de Comunicação da Organização Internacional de Migração (OIM) Brasil.
Ela afirma que, como migração não pode ser interrompida, já que o cenário está ligado a diversos fatores, como violência, demografia, escassez de trabalho, aumento de desigualdade e desastres naturais, os países devem gerenciar mais e melhores vias regulares de migração para que as pessoas evitem utilizar rotas perigosas. Apenas nos oito primeiros meses do ano, a OIM contabilizou 151.772 chegadas de pessoas pelo mar do Mediterrâneo, sendo a maioria na Itália (113.483) e na Espanha (20.342).
Além das mortes e desaparecimentos no mar, organizações não-governamentais, como a SOS Mediterranee e a Sea Watch, denunciam os retornos forçados de migrantes resgatados. O cenário é de preocupação, uma vez que os viajantes podem voltar a fazer o trajeto para fugir do país de origem, colocando as próprias vidas em risco novamente.
“Os últimos dias mostraram mais uma vez a inadequação da resposta humanitária no Mediterrâneo central. As necessidades superaram em muito os meios disponíveis para impedir a perda em massa de vidas que continuamos a testemunhar no Mediterrâneo Central, onde 2.021 pessoas morreram ou desapareceram apenas este ano. É o ano mais mortal no Mediterrâneo desde 2017”, afirma Sophie Beau, cofundadora e diretora-geral da SOS Méditerranée France – grupo que auxilia no resgate de migrantes à deriva.
Outro ponto citado pelas entidades é a aprovação de leis autoritárias em determinados países. É o caso da Itália, que sancionou recentemente a lei que obriga os navios de busca e salvamento a se dirigirem, imediatamente, a um porto designado após um único resgate. Apesar do objetivo inicial ser minimizar o tempo de permanência dos passageiros nas embarcações, em mais de 60 casos desde dezembro de 2022 o governo italiano enviou os navios para portos “desnecessariamente distantes”, levando até cinco dias de navegação.
Apesar de não concordarem com as regras, as ONGs encontram-se de “mãos atadas”, pois, em caso de descumprimento, podem receber uma multa milionária, bem como ter a embarcação presa por 20 dias ou até mesmo confiscada.
“Temos assistido com crescente preocupação às políticas de portas fechadas e de dissuasão da União Europeia. Estas políticas não resultam em menos pessoas tentando atravessar o Mediterrâneo Central, mas em mais sofrimento e mais mortes. Desde que a Itália – apoiada pela maioria silenciosa dos Estados-membros do bloco – implementou essa medida, o número de naufrágios que resultaram em perda de vidas aumentou dramaticamente”, diz o grupo Sea Watch, que também auxilia nos resgates no mar.
Para Rodrigo Amaral, professor de Relações Internacionais na PUC-SP, a execução de tais práticas acontecem, sobretudo, devido à soberania dos países na União Europeia, uma vez que o bloco possui uma política robusta envolvendo a recepção de migrantes. Isso significa que, mesmo com a recomendação de “boas-vindas” do grupo europeu, cada Estado-membro é responsável pela execução das medidas sobre migração, o que varia conforme a posição política de cada governo.
“Existe uma contradição entre o arcabouço legal da União Europeia e a falta de execução prática na recepção desses migrantes em condições vulneráveis. Há a soberania dos Estados no assunto e, dependendo da representação política partidária, as abordagens são diferentes. É por isso que a Itália, hoje sob um governo de extrema-direita, chama a atenção, porque, de todos os países mediterrâneos – Espanha, Itália, Grécia e França -, é a representação mais controversa da vinda de migrantes ao seu país”, avalia Amaral.
Na última semana, a SOS Méditerranée e a Sea Watch, ao lado de outras 54 organizações, assinaram um documento alertando a União Europeia do aumento de mortes na rota do Mediterrâneo. No texto, as entidades pediram a revogação da lei italiana, alertando que, caso a assistência humanitária no mar continue sendo obstruída pelos países europeus, é provável que haja uma presença drasticamente reduzida – ou mesmo inexistente – de navios civis de busca e salvamento no Mediterrâneo até o fim deste ano.
“O resultado será ainda mais vidas perdidas. A Comissão Europeia tem de pôr termo às práticas depreciativas dos seus Estados-Membros relativamente aos princípios básicos do direito internacional nas fronteiras externas da União Europeia, bem como criar corredores legais e seguros para evitar que as pessoas sejam forçadas a entrar em barcos não navegáveis em busca de segurança”, diz o documento, enviado ao bloco europeu.
Fonte: SBT News
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