A Rússia celebra neste sábado (30) o primeiro aniversário da anexação ilegal das províncias de Donetsk, Lugansk, Zaporíjia e Kherson, no leste da Ucrânia. O Kremlin se gaba da usurpação com um truque de linguagem, referindo-se a “filiação de novas regiões”.

Foram cunhadas moedas especiais para registrar a ocasião, e estão programados concertos e festivais nos territórios ocupados. Moscou promete prosperidade e estabilidade, enquanto na realidade entre 1 milhão e 2 milhões de habitantes abandonaram as regiões, apenas em 2023.

A DW escutou residentes sobre como suas vidas mudaram nos últimos 12 meses.

Visões conflitantes

Nas autoproclamadas “repúblicas populares” da região de Donbass, que em 2014 declararam independência em relação a Kiev, a população tem uma opinião de sua “filiação” à Rússia diversa da dos territórios ucranianos anexados após a invasão, em 24 de fevereiro de 2022.

Muitos de Donetsk e Lugansk, sobretudo nas cidades poupadas dos combates, saúdam a anexação como fim de anos de isolamento econômico e da incerteza legal que prevalecia desde 2014. “Depois de nove anos, o abastecimento d’água voltou a funcionar 24 horas por dia, comenta com orgulho a enfermeira Kateryna L., de Lugansk.

Sua compatriota Maryna K., atualmente desempregada, está feliz de ver os correios novamente entregando pacotes fora da “república”. Antes, ela tinha que ir de carro até a fronteira para pegar mercadorias compradas em lojas online russas. Também se alegra que a rede de telefonia celular esteja novamente funcionando.

O rublo substituiu em Donetsk e Lugansk a moeda ucraniana, a grívnia. Mas Maryna se preocupa com a desvalorização do rublo e a inflação resultante: “O gás ficou 70% mais caro, e não se encontram mais peças sobressalentes para automóveis estrangeiros.”

Por sua vez, a corretora imobiliária Anna S. aponta o encarecimento drástico dos imóveis: “Um apartamento de dois quartos, avaliado de 8 mil a 10 mil dólares [R$ 40 mil a R$ 50 mil] em fins de 2021, agora pode custar de 25 mil a 30 mil dólares.”

Moradores de Donetsk e Lugansk registram que demonstrativos projetos de embelezamento urbano foram lançados em suas cidades depois da anexação. O foco principal é Mariupol, que foi devastada pelo exército russo no segundo trimestre de 2022. Segundo estimativas da Organização das Nações Unidas, foram danificados 90% dos edifícios de apartamentos e 60% das casas de família.

Os residentes enfatizam que não é tão fácil obter uma moradia substituta quanto alega a propaganda do Kremlin. “Os documentos expedidos pela administração russa para apartamentos danificados não permitem o registro de propriedade para prédios novos. Em vez disso, só concedem uma espécie de direito vitalício de residência sem pagamento de aluguel”, explica Larissa S., ex-empregada de uma firma de advocacia de Mariupol. Para tornar-se proprietário, é preciso provar que a antiga casa foi totalmente destruída e que não se possui nenhum outro imóvel na Ucrânia nem na Rússia.

Pressão para optar por um dos lados

A ex-professora Svitlana T. conta que antes da guerra havia 30 escolas em seu município, e agora são só seis: “Não há nem professores nem alunos no nosso lugarejo. Só duas famílias têm crianças em idade escolar. Elas queriam assistir às aulas à distância oferecidas por uma escola ucraniana, mas os ocupadores russos as forçaram a frequentar uma escola ‘normal’, em outra localidade a 40 quilômetros de distância.”

Ela tentou dar aulas pela internet para uma escola ucraniana até meados de 2023, quando as autoridades ocupadoras começaram a interrogar os educadores desempregados sobre suas fontes de renda, e prenderam um dos amigos dela.

Os docentes das porções ocupadas de Kherson e Zaporíjia mostraram-se extremamente cautelosos com o que contavam à DW. Cada vez mais deles estão adotando o plano de ensino russo. Embora escolas ucranianas continuem pagando seus funcionários para que deem aulas online, eles não conseguem comprar mais nada com a moeda nacional.

Enquanto isso, professores ucranianos que ensinem em escolas “russas” estão sujeitos a até três anos de prisão na Ucrânia e a terem sua licença cassada por 15 anos, pelo crime de colaborar com a Rússia. “Os novos livros russos começam a espalhar propaganda já desde a primeira página. Então eu prefiro ficar desempregada”, afirma Svitlana T.

Os habitantes consultados queixaram-se que é extremamente duro viver nas áreas anexadas sem um passaporte russo, que em muitos casos é o único acesso a tratamento de saúde. Enquanto isso, a Ucrânia processa sistematicamente por colaboração com o inimigo os diretores de hospital indicados pela Rússia.

Os portadores de passaporte ucraniano não conseguem emprego nem aposentadoria. Sem cidadania russa, não podem registrar um automóvel nem um imóvel, sequer obter um chip de celular ou ser atendidos nos bancos. Ainda é possível deixar os territórios ocupados munido de um passaporte ucraniano, embora seja difícil.

Os ocupadores investigam e interrogam rigorosamente quem tenha essa intenção, relata Serhiy O., proprietário de uma pequena companhia de ônibus: “Todo mundo é examinado, os homens sofrem interrogatórios e revistas corporais.”

Fonte: DW Brasil

Tags: kremilin]guerra, Moscou, Ucrania