Viver e sobreviver: A Luta pela saúde mental na comunidade LGBTQIAPN+

“Ele não tinha gerado aberração humana”. Esse foi o drama vivido pelo auxiliar de cozinha Rafael Oliver, 20 anos, morador de um bairro quilombola em São Luís, que tem uma vida marcada por desafios desde a adolescência.

“Desde cedo, percebi ser diferente, mas a realidade da comunidade onde cresci me ensinou que era mais seguro esconder quem eu realmente sou. O medo de ser descoberto como gay sempre esteve presente, e a rejeição parecia inevitável”, recorda.

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Rafael contou que quando tinha 17 anos revelou aos pais sobre sua orientação sexual, foi agredido e expulso de casa. O jovem lembra que chegou a dormir em um terminal de ônibus por três noites e até mesmo a mãe foi proibida de ajudá-lo.

  “Meu pai bateu no meu rosto, gritou, me chamou de ‘bicha’ e disse que a partir daquele momento eu não era mais filho dele, porque”, contou.

Após enfrentar noites de frio e fome, a única solução encontrada por Rafael foi se submeter a situações de abuso sexual. “Conheci uma pessoa em situação de rua que me levou para um casarão abandonado, me deu comida e abrigo. Fui abusado sexualmente e, sem alternativa, aceitei. A sensação era de ser um lixo humano, abandonado e sem apoio”, relembra. Com os traumas vividos no decorrer dos anos, ele desenvolveu depressão e ansiedade. Hoje, encontrou “a cura” na religião.

Um estudo piloto da pesquisa Smile, liderada pela Universidade Duke, nos Estados Unidos, coordenado pela professora brasileira Jaqueline Gomes de Jesus, vinculada ao Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), investiga a saúde mental de pessoas identificadas como minorias raciais e de gênero.

Segundo os dados da pesquisa, cerca de 52% dos jovens LGBTI+ já se automutilaram, comparado a 35% dos jovens cis héteros. Além disso, pessoas trans apresentam taxas mais altas de problemas de saúde mental do que pessoas cisgêneros lésbicas, gays e bissexuais.

Os dados também revelam que 44% das pessoas LGBTI+ pensaram em suicídio, contra 26% de cis héteros; 92% dos jovens trans tiveram pensamentos suicidas e 84% se automutilaram. As tentativas de suicídio também são significativamente mais altas entre a comunidade LGBTQIAPN+, variando de 5% a 46% entre diferentes subgrupos da sigla. Na população em geral, esse índice é de 1,2%.

A estudante universitária Júlia Mendes, 22, relata que se identificar como uma mulher lésbica tem sido fonte de sofrimento e dor. “Deveria ser algo natural, mas para mim, tem sido uma fonte constante de sofrimento. Desde a adolescência, enfrento uma batalha interna e externa que me levou a desenvolver depressão e síndrome do pânico”, desabafa. 

Até hoje, a estudante nunca encontrou a oportunidade de dizer aos pais quem ela realmente é. Para a família, o caso de Júlia ainda é um segredo e ela se comporta como se fosse heterossexual.

“Namorei um vizinho para tentar esconder que sou lésbica e considero que fui violentada, pois transar com ele sem desejá-lo e contra a minha vontade foi uma violência. Minhas noites eram preenchidas por insônia e crises de choro”, relembra.

O psicólogo clínico e professor do Centro Universitário Estácio São Luís, Gustavo Chaves, destaca o impacto profundo dessas experiências na formação da identidade e na saúde mental dos indivíduos LGBTQIAPN+.

“A população LGBTQIAPN+ cresce internalizando esse lugar de não pertencimento e essa discriminação contínua resulta em sentimentos de deslocamento e desvalorização, levando a altas taxas de depressão, ansiedade e outros transtornos mentais,” observa Chaves.

O professor explica que nos casos em que há discriminação e preconceito, o ambiente é visto como desumanizador para esses indivíduos desde a infância. “Essas pessoas se subjetivam no lugar de preconceito e internalizam diversas crenças de desamor, porque elas são, desde muito cedo, na família, na escola, nas igrejas, alvo de discurso e práticas que ensejam o auto-ódio, a vergonha, a não aceitação”, explica.

O ambiente social hostil contribui para o desenvolvimento de diversos transtornos psicológicos. “Muitos desenvolvem algo que a gente chama de desamparo aprendido, que é a ideia de que não existe mais nada que possam fazer para se livrar da dor e violência”, conta o professor.