Afroempreendedorismo: geração de renda e de mudanças sociais

O mercado de trabalho ainda reflete a desigualdade racial presente em tantos outros setores da sociedade, com uma inserção e possibilidade de ascensão bem menor para a população negra, do que para trabalhadores não negros. A realidade pode ser verificada com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do segundo semestre do ano passado.

Segundo o levantamento, a taxa de desocupação dos negros é de 9,5%, sendo 3,2 pontos percentuais acima da taxa dos não negros. Em relação às mulheres negras, a taxa chega a 11,7%, acumulando as desigualdades de raça e de gênero.

As estatísticas incomodam e sinalizam alerta sobre a necessidade de políticas públicas de inclusão no mercado de trabalho. Porém, para além do mercado formal, um ecossistema próprio ganha cada vez mais força e ajuda a possibilitar oportunidades entre a população negra e inspira uma economia cada vez mais inclusiva: o Afroempreendedorismo. Conforme o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), trata-se de um ‘fenômeno econômico, político e social que incentiva a população negra a se desenvolver uma atividade empreendedora’.

Infográfico Afroempreendedorismo de Difusora News

Empreender é cada vez mais a realidade de pessoas negras, especialmente no Maranhão, onde cerca de 80% dos empreendedores no estado são autodeclarados pretos ou pardos, segundo levantamento realizado pelo Sebrae com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do terceiro trimestre de 2023. O levantamento mostra ainda que, do total de 860.475 empreendedores maranhenses, 127.012 se autodeclaram pretos e outros 555.745 pardos, somando um quantificativo de 682.757 afroempreendedores.

São iniciativas e movimentos em várias áreas do empreendedorismo, que além de gerar renda e oportunizar mais igualdade na qualidade de vida dos empreendedores, ajudam a transformar realidades, através do compartilhamento de saberes, do incentivo à valorização da cultura negra e, principalmente do trabalho coletivo.

Esse é o caso de Virgínia Diniz, que há mais de 10 anos atua com moda afro e conta que supera os desafios que surgem na caminhada empreendedora com sua empresa ‘Coisas da Vida’ (@coisas_da_vidaslz) através do que ele chama de ‘se aquilombar’.

“Enfrentamos desafios diários, principalmente pelo preconceito de que o negro consiga empreender. Nós sempre trabalhamos colaborativamente, seja em feiras ou em lojas físicas. Porque a gente acredita que se aquilombar, se juntar a outras pessoas, é sempre o caminho mais rápido para a gente chegar em qualquer lugar”. (Virgínia Diniz)

Além do trabalho coletivo, Virgínia também compartilha seus conhecimentos e vivências como afroempreendedora através de palestras e oficinas de forma voluntária. “Trabalho com oficinas, com palestras sobre empreendedorismo, sobre autoestima. Porque trabalhar com moda afro mexe também com a autoestima do povo negro, que por muito tempo foi apagada e a gente faz o caminho contrário, colocando em destaque a beleza e a cultura negra para fazer com que o povo negro se fortaleça”, destaca a afroempreendedora.

Virgínia Diniz compartilha seus conhecimentos e vivências como afroempreendedora através de palestras e oficinas.n (Foto: Arquivo pessoal)

A Clara Jaysa tem apenas 15 anos, mas já atua há quase dois anos como afroempreendedora trancista. Além de já ter um rendimento com seu trabalho, também tem a consciência de que o ofício ajuda a transformar a vida de outras pessoas, seja de quem utiliza os serviços, seja das meninas com quem ela partilha conhecimentos através das oficinas, nas quais participa como voluntária.

“Já consigo cobrar pelo meu trabalho, mas sempre muito feliz com o que faço, porque sei que eleva a autoestima das pessoas, principalmente das meninas negras, que passam por preconceito com seus cabelos por ser crespo. Quando faço uma trança em uma menina, sinto a felicidade que elas sentem quando se olham no espelho. Além disso, também já ensino outras meninas a fazer tranças e, claro, reconhecer sua ancestralidade como pessoa preta”, destaca.

Clara conta que começou a aprender a arte de fazer tranças com a mãe, mas que antes de transformar o passatempo em empreendimento, fez cursos para se aperfeiçoar. Hoje ela tem um mini estúdio na sua casa onde atende as clientes e compartilha o trabalho nas redes sociais através do perfil @ca.afrohair.

A Clara Jaysa tem apenas 15 anos, mas já atua há quase dois anos como afroempreendedora trancista (Foto: Arquivo pessoal)

PRETA DESIGNER E PRETA ARQUITETA
Os desafios enfrentados por quem decide investir em um negócio próprio tendem a ser maiores quando se trata de afroempreendedorismo. É o que relatam as empreendedoras Marines de Morais, designer gráfica e Leticie Ayres, arquiteta. Elas contaram ao Difusora News, um pouco da sua jornada empreendedora, destacando desafios, oportunidades, conquistas e, principalmente, como a atuação delas como afroempreendedora ajuda outras pessoas que estão à sua volta.

Marines começou a trilhar pelos caminhos do empreendedorismo há sete anos. Hoje, mesmo com a consolidação da ‘Preta Designer’, sua empresa de designer gráfico e papelaria personalizada, ela diz que os desafios permanecem. “Os desafios são constantes quando se trata de mulher negra no mundo empreendedor. As cobranças, dúvidas e a falta de confiança sempre serão dobradas. Empreender é solitário em sua maior parte, então o medo, a possibilidade do negócio não dá certo são desafios diários”, conta.

Em contrapartida, às dificuldades, a designer gráfica celebra as conquistas alcançadas com o negócio. “Conseguir estudar, ter dinheiro para comprar o que quero, ter liberdade de ser o que sou, e poder atender todos sem discriminação são algumas das conquistas que hoje celebro”. A empreendedora relata ainda que sua jornada tem servido de inspiração para outras mulheres que desejam, assim como ela, ser uma afroempreendedora.

“Já recebi várias mensagens de mulheres negras que começaram a empreender por me acompanhar no dia a dia, tomaram coragem a partir de relatos que faço no Instagram. Elas enxergarem que podem ter um negócio com tudo regulamentado e organizado, com CNPJ, Marca Registrada e que tudo isso pode fazer parte do mundo delas, não tem preço”, contou.

Designer gráfica, Marines de Morais conta que sua jornada tem servido de inspiração para outras mulheres que desejam ser uma afroempreendedora. (Foto: Arquivo pessoal)

Atuando como afroempreendedora há 10 anos em uma área tida como de elite, a arquiteta e urbanista Leticie Ayres diz que esse é o primeiro e principal desafio que enfrentou e continua enfrentado com a decisão de trilhar uma jornada no ecossistema do empreendedorismo. “A maioria tem a imagem de um arquiteto como uma pessoa rica e não temos representatividade de arquitetos negros. Quando me apresento como arquiteta preta, gera uma grande surpresa que infelizmente nem sempre é positiva”, revela.

Mesmo com as barreiras impostas em alguns casos, a arquiteta conta que tem conseguido elaborar projetos para grandes empresas, que antes eram feitos apenas por arquitetos renomados do estado graças à sua persistência e, principalmente às capacitações e treinamentos que busca. Ela também destaca a representatividade que sua iniciativa tem para outras pessoas, especialmente mulheres.

“Uma estagiária preta me relatou que me via como uma referência de arquiteta preta, que se inspirava em mim. Sempre evidencio pela minha atuação que nós mulheres pretas, provenientes de família de baixa renda, podemos muito, apesar dos obstáculos muito maiores que se apresentam para nós. E a resistência e superação faz parte da nossa história”. (Leticie Ayres)
Leticie Ayres atua como afroempreendedora há 10 anos em uma área tida como de elite: a arquitetura (Foto: Arquivo pessoal)

AFROEMPREENDEDORISMO NA ESCOLA
E o afroempreendedorismo foi para a escola. No último dia 26 de abril, o Centro Educa Mais Maria Aragão, localizado na Cidade Operária, em São Luís, sediou a I Feira Preta de Empreendedorismo, visando integrar a comunidade, os pequenos empreendedores e os alunos da escola. O evento foi promovido pelo Sebrae, através do programa Educação Empreendedora do Sebrae, em parceria com o Governo do Estado, a escola Mais Integral Maria José Aragão e reuniu empreendedoras da região, especialistas em empreendedorismo e a comunidade escolar, numa partilha muito rica de saberes e oportunidades entre os vários atores.

Durante a feira, os estudantes participaram de oficinas de Defesa de Pitchs, Artesanato e Turbantes, e palestras sobre afroempreendedorismo e tiveram ainda a oportunidade de mostrar o que já sabiam ou aprenderam durante o evento. Assim foi com a Ana Letícia, que tem 15 anos e é estudante do 1º ano e, além de participar de palestras, também colocou em prática um passatempo, que em breve, segundo ela, virará profissão.

A I Feira Preta de Empreendedorismo teve como objetivo integrar a comunidade, os pequenos empreendedores e os alunos da Escola Maria José Aragão.

“Foi uma experiência única, onde pude fazer tranças em muitos cabelos e me senti especial fazendo isso. Ainda não faço isso profissionalmente, mas planejo fazer um curso para me especializar nessa área, quem sabe ter meu negócio. Além disso, aprendi muito aqui, peguei várias dicas de como fazer outros moldes, por exemplo”, conta a jovem que aprendeu a fazer tranças com a irmã e aspira seguir como empreendedora trancista.

O gestor da escola, Wilson Chagas, disse que o evento foi uma grande aula de empreendedorismo para os alunos. “Foi uma aula diferente, que envolveu técnicas de empreendedores e de alguns outros fazeres que eles vão levar para o seu projeto de vida, assim como alguns estudantes que já são empreendedores e, inclusive, fizeram a exposição dos seus produtos e serviços durante a feira”, comentou.

A agente Local de Inovação do Sebrae, Katyuscia Karla, explicou que a exemplo da feira realizada na escola José Maria Aragão, o programa Educação Empreendedora, trabalha com o incentivo ao afroempreendedorismo nos territórios, ofertando capacitações, reuniões e diversas oficinas para quem está inserido nesse ecossistema. “Nós atuamos junto aos empreendedores, com formações sobre vários temas que os ajudam a melhorar seus empreendimentos, além de aproximá-los das escolas no contexto da educação empreendedora”, relatou.

A I Feira Preta de Empreendedorismo foi uma partilha muito rica de saberes e oportunidades entre empreendedores, especialista e a comunidade escolar (Foto: Gildean Farias)

FEIRA MARANHÃO PRETA
Uma das principais iniciativas de afroempreendedorismo no Maranhão é a Feira MA Preta. A ação é regulamentada pelo Projeto de Lei 400/2021, de autoria da deputada Ana do Gás (PCdoB), que inclui a Feira no calendário de eventos do Maranhão e acontece desde 2018. O principal objetivo do projeto é manter e celebrar as tradições ancestrais das matrizes africanas, assim como das comunidades periféricas, quilombolas e favelas do estado do Maranhão.

A Feira MA Preta começou em 2018 com a participação de 10 pessoas e, ao longo de seis anos, conseguiu superar as expectativas e aumentar em 100% a participação de afroempreendedores — atualmente, entre 100 e 120 pessoas participam das atividades mensais e itinerantes. Até o ano passado, a Feira era realizada apenas uma vez no ano, e chegou a ter a participação de 400 mulheres.

A idealizadora e coordenadora-geral da Feira MA Preta, Ana Rosa Silva, disse que a iniciativa tem 261 afroempreendedores mapeados na Região Metropolitana de São Luís e outros em mais 10 municípios do estado.

O objetivo da iniciativa é aumentar ainda mais a participação de afroempreendedores na edição estadual do evento em 2024, que ocorrerá em novembro.

“As expectativas para 2024 são ainda mais ambiciosas: pretendemos nos tornar a maior feira do Nordeste, com a presença estimada de mais de 500 afroempreendedores, oferecendo uma ampla variedade de serviços e produtos, representando 17 segmentos diferentes”, pontuou.

Segundo a coordenação do evento, a pretensão é atuar em 10 municípios e colaborar com 32 quilombos através das rotas de turismo quilombola — uma oportunidade única para mostrar a cultura, culinária e saberes tradicionais do Maranhão, tudo em um espaço que acolhe e celebra as mulheres pretas.

A Feira MA Preta começou em 2018 com o objetivo de manter e celebrar as tradições ancestrais das matrizes africanas. (Foto: Arquivo)

A coordenadora destaca que o afroempreendedorismo tem contribuído de forma significativa e concreta para transformar as realidades locais onde estão inseridos.

“O afroempreendedorismo não apenas gera impacto econômico, mas também promove mudanças sociais significativas, fortalecendo as comunidades locais e proporcionando oportunidades para o crescimento e o desenvolvimento sustentável”. (Ana Rosa Silva)

Os resultados do ecossistema no Maranhão podem ser verificados em cinco pilares de inclusão econômica e social: geração de empregos, fortalecimento da economia local, preservação da cultura e tradições, empoderamento econômico e inovação e diversificação, segundo pontuou a coordenação da Feira Preta MA.

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