Com consequências que vão da terra ao próprio corpo, o garimpo deixa uma marca de violência contra mulheres indígenas que se perpetua mesmo após a contenção do crime. Em casos subnotificados, mas perceptíveis entre mulheres que acompanham a rotina de comunidades, os problemas vão de agressões físicas à violência sexual, e trazem um sentimento de dúvida sobre como agir ao lidar com a invasão do próprio território.
A barreira linguística, a invisibilidade e a falta de informação são pontos semelhantes em relatos de representantes indígenas. Em uma visita feita há poucos meses à comunidade Maturacá, no Amazonas, Telma Taurepang conta ter se reunido com mulheres Yanomamis e encontrado um grande número de grávidas ou de indígenas que carregavam crianças pequenas. Em muitos dos casos, fruto de abuso.
“Elas foram pegas e estrupadas pelos garimpeiros, pela invasão. Tanto é que os bebês não são da etnia, são bebês brancos, de olhos claros. São bebês de homens brancos”, diz Taurepang. Ela também destaca que a situação foi percebida em maioria por indígenas novas, com idades que variam entre os 12 e 17 anos. “Algumas sofreram violência, outras, por questão da passagem do próprio garimpo, da própria exploração do turismo”, completa a coordenadora da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira.
Taurepang também relata que abusos ocorrem dentro da própria comunidade, por companheiros, e que a maior parte das mulheres indígenas possuem dificuldade de levar denúncias à diante. “As mulheres precisam ser ouvidas, e muitas não falam. Muitas ainda sentem receio. Muitas ainda são violentadas e, quando a gente leva essa discussão para dentro desses territórios, a gente fala que a violência sexual não é tradicional”, aponta.
Mesmo com a subnotificação, o número de registros de violências contra mulheres indígenas no Brasil se aproxima dos 4 mil casos, de acordo com informações compiladas do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde. Os registros, ainda preliminares, apontam 2.474 casos de violência contra mulheres indígenas em 2022, e 1.469 entre janeiro e julho deste ano.
Em monitoramentos anteriores, divulgados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena, as principais situações de violência foram atribuídas ao espancamento e a ameaça. Os casos ocorrem principalmente dentro da própria casa. Publicação de maio deste ano feita pela ONU Mulheres, no entanto, destaca o aumento do índice de violência após ação do garimpo. Foram diversos casos reportados em consequência do crime nas regiões indígenas.
“Em 2022, a Agência Sumaúma, em parceria com o Instituto Socioambiental e a organização indígena Hutukara, reportaram inúmeros casos em que mulheres e meninas indígenas estiveram sujeitas a exploração sexual e sexo por sobrevivência em troca de alimentos, álcool, celulares, armas e outros. É notável o número de incidentes de violência sexual contra meninas, em especial. De acordo com informações, em janeiro de 2023 haveria ao menos 30 meninas yanomami grávidas de garimpeiros”, descreve estudo divulgado pela organização.
Além da ação cometida pelos garimpeiros, o relatório também destaca que o avanço da ação ilegal impactou em aumento do registro de violência por parte dos homens indígenas, que passaram a ter mais acesso ao álcool e armas de fogo: “Levado a maiores graus de violência com base em gênero, incluindo violência doméstica e sexual, perpetrada também por sujeitos de dentro das comunidades”.
Ponto de vista do governo
A exposição de meninas e mulheres a situações de violências por invasões em territórios é também observada pela Secretária interina de Articulação e Promoção de Direitos Indígenas, Joziléia Kaingang. Ela destaca que as ações contra a população indígena têm como primeiras vítimas mulheres e crianças: “A gente sabe que tem territórios indígenas que são invadidos, que as mulheres são violentadas, a gente viu nessa situação do garimpo na terra indígena Yanomami, as meninas crianças violentadas e que estão gestantes”.
Como ação, o Ministério dos Povos Indígenas busca estratégias para lidar com o problema, e trabalha com projetos para conscientizar mulheres em comunidades a respeito dos direitos que elas possuem. Além de tornar informações acessíveis. Como primeiro passo, a pasta tem articulado para a implementação da tradução da Lei Maria da Penha para línguas indígenas. E negocia com a Advocacia Geral da União (AGU) para a tradução da Constituição Federal em uma novo dialeto indígena.
“Então, como você trata isso, como você trabalha com uma criança que tem o seu corpo violado e que não consegue compreender aquela lógica daquele homem não indígena que chega ali para machucar? Que machuca tudo, machuca a pessoa, mas machuca o território. Eu acho que essas são as violências mais graves que a gente precisa enfrentar, e assim de olhos bem abertos, para a gente poder construir políticas que possam assegurar a segurança dos territórios”, diz.
Projeto de Lei contra a violência
No Congresso, a deputada indígena Célia Xakriabá (Psol-MG) prepara um projeto de combate à violência contra mulheres indígenas, e quer formalizar a proposta no próximo mês, durante a Marcha das Mulheres Indígenas, em Brasília. A parlamentar defende a implementação de um sistema que permita o combate à violência pela justiça de forma interna, com a colaboração da própria comunidade.
“Pensar o combate à violência das mulheres indígenas é o combate ao feminicídio, mas eu tenho dito também sobre o combate ao mulhericídio, que é quando nos mantém vivos, mas tentam silenciar a nossa voz”, defende.
Fonte: SBT News