Enquanto Munique ferve em clima de Oktoberfest, encontramos “Vasily” num parque tranquilo nos arredores da cidade. Na Alemanha há quase um mês, foi um dos primeiros desertores russos a entrarem legalmente no país.

Ainda que se sinta seguro na Alemanha, o jovem diz temer pela família deixada para trás – motivo pelo qual prefere esconder seu nome verdadeiro. Na Rússia, onde é procurado pelas autoridades, ele pode pegar até 15 anos de prisão por deserção.

“Não luto contra meu próprio povo”

Vasily é artilheiro. Ele estudou na academia militar e serviu o Exército por vários anos. Mas há muito decepcionado com a instituição, ele tentou abandonar as Forças Armadas – sempre em vão. Até que a Rússia atacou a Ucrânia e ele recebeu ordens para ir para o front.

“Eles disseram: ‘Prepare-se, já estamos quase sem homens'”, recorda. Mas ele se recusou: “Sou de origem ucraniana”, disse na ocasião ao seu superior. “Meu pai é ucraniano, não vou lutar contra meu próprio povo.”

Apesar de todas as ameaças do superior, Vasily não foi para o front. Mas tampouco foi exonerado de sua unidade. Assim como ele, outros desertores também relataram à DW sobre a dificuldade em deixar o Exército mesmo antes de 21 de setembro de 2022, quando o presidente Vladimir Putin anunciou uma mobilização parcial. Depois disso, dizem, tornou-se completamente impossível. As penalidades por deixar o quartel sem permissão e por deserção foram aumentadas para dez e 15 anos de prisão, respectivamente.

“Não tinha saída. Recebi uma ligação do comando e eles disseram: ‘Ou você vai para a guerra ou abriremos um processo criminal contra você. Então você vai para trás das grades, de onde será enviado para a guerra do mesmo jeito.'” Vasily decidiu então fugir da Rússia.

Viktor: “Era simplesmente impossível recusar”

De acordo com estimativas da organização Go by the Forest, que ajuda russos que não querem ser convocados para a guerra, mais de 500 desertores deixaram o país desde que a mobilização foi anunciada. E esses são apenas os que procuraram os ativistas de direitos humanos. O número real é provavelmente muito maior.

A maioria desses homens foge para o Cazaquistão ou para a Armênia. Um deles é o oficial de comunicações “Viktor”, que também prefere não revelar seu nome verdadeiro. Ao contrário de Vasily, no entanto, ele acabou participando das operações militares russas contra a Ucrânia.

Por meio de uma chamada de vídeo a partir da capital do Cazaquistão, Astana, Viktor afirma que também tentou sair do Exército. Mas em fevereiro de 2022 foi chamado para participar de um exercício na península ucraniana da Crimeia, anexada pela Rússia. Logo em seguida, em 24 de fevereiro, sua unidade participaria da invasão russa.

“Eles nos acordaram às 5h da manhã, nos alinharam em colunas e disseram: ‘Vamos lá!’ Mas isso sem dizer para onde estávamos indo. Naquele momento, era simplesmente impossível recusar. Se você corresse para frente, levava tiro dos ucranianos, e se corresse para trás, era pego pelo próprio povo”, lembra Viktor.

Ele mesmo esteve em território ucraniano até meados de 2022. “Vi prisioneiros de guerra executados e inclusive as ordens [para tal] do comandante da unidade.” Mas garante: “No nosso país não houve nada parecido com o que aconteceu em Bucha.” Viktor afirma ter tomado conhecimento dos massacres de civis na Ucrânia pela primeira vez no fim de abril de 2022, quando conseguiu acessar a Internet. “Depois disso, repensei muita coisa.”

Yevgeny: “Estou pronto para ser julgado”

Yevgeny, oficial de uma unidade especial, também foi enviado à fronteira com a Ucrânia em fevereiro de 2022 para realização de exercícios militares. De origem pobre, o jovem havia recebido do Exército a promessa de ascensão social.

“Esperávamos e acreditávamos que não haveria guerra”, diz, ao lembrar daquele fatídico fevereiro de 2022. “Achávamos que Putin era um assassino e ladrão, mas não um fanático que iniciaria uma guerra. Mas eis que as coisas se revelaram diferentes.”

Em 24 de fevereiro, sua unidade cruzou a fronteira com a Ucrânia e chegou até Brovary, perto de Kiev. “Para nós, foi tudo muito triste. Em 30 de março quase toda uma companhia morreu”, diz, em alusão aos combates. “Quando estávamos perto de Kiev, não fizemos prisioneiros pois não havia como levá-los para a Rússia, então eles foram mortos,” Mas acrescenta que o lado ucraniano lidou com a situação da mesma forma.

Yevgeny nega envolvimento nos assassinatos. “Estou pronto a responder em tribunal. Minha consciência está limpa. Sim, eu lutei, sim, eu atirei, mas também fui alvejado e também quero viver.”

Medo de ser extraditado para a Rússia

Após o fracasso da ofensiva russa perto de Kiev, a unidade de Yevgeny foi transferida para Donbass. Para fugir de lá, ele deu um tiro na própria perna. “Nós nos ferimos perto das posições ucranianas e dissemos que haviam sido os ucranianos a atirar em nós. Acreditaram em nossa história e nos levaram para um hospital na Rússia.”

Em meados de agosto de 2022, Viktor recebeu licença. De volta ao quartel, tentou pedir baixa, mas não conseguiu fazê-lo antes de a mobilização ser anunciada. Ambos os oficiais acabaram fugindo para o Cazaquistão. Mas por serem alvos de processos criminais na Rússia, eles não conseguem nenhum emprego oficial no país. Temendo a extradição para a Rússia, nem mesmo chips de celulares ou contas bancárias eles têm em seus nomes.

Solicitação de vistos humanitários para desertores russos

Viktor vislumbra três opções para si: França, Alemanha ou Estados Unidos. “Porque esses países emitem documentos de viagem temporários. Afinal de contas, nenhum de nós tem passaporte.” Ele já entrou em contato com essas e outras embaixadas de países ocidentais várias vezes, mas até agora sem sucesso.

“Em maio de 2022, o Ministério do Interior da Alemanha disse que os desertores do Exército russo receberão status de refugiados, pois a deserção é entendida como um ato político contra a guerra e, portanto, a perseguição também constitui perseguição política”, explica Rudi Friedrich, diretor executivo da associação Connection. Com sede em Offenbach, ela faz campanhas internacionais para objetores de consciência.

Juntamente com outras ONGs, ela pede ao Parlamento Europeu e aos Estados-membros da União Europeia que protejam quem se recusa a lutar em nome de Putin, através, por exemplo, da concessão de vistos humanitários, pois asilo só é possível solicitar na própria Alemanha.

Mas sem passaporte e visto, isso é quase impossível para os desertores, aponta Friedrich. Por isso é preciso proteger quem assume um alto risco pessoal e não quer lutar e nem participar dos crimes dessa guerra.

Os caminhos dos desertores russos para a Europa

Vasily é um dos primeiros desertores a conseguirem ir do Cazaquistão para a Europa ocidental sem passaporte, tendo conseguido emprego como programador numa empresa de TI na Alemanha. A embaixada alemã no Cazaquistão emitiu para ele uma permissão de viagem temporária para estrangeiros com visto de trabalho. Não foi fácil encontrar uma empresa que aceitasse um desertor sem passaporte, admite Vasily. Mas o mais difícil foi deixar o Cazaquistão.

Na primeira vez que tentou, ele foi retirado do avião após ser reconhecido no sistema do banco de dados internacional de indivíduos procurados. Vasily conta como sua filha de cinco anos correu para todos os funcionários da fronteira pedindo que “deixassem o papai sair”. No dia seguinte, graças a seu advogado, Yernar Koshanov, ele conseguiu deixar o país. “Aparentemente há certas condições sob as quais isso é possível”, comenta, sem dar detalhes: “Há uma saída.”

Agora quase estabelecido, Vasily fala com entusiasmo sobre seu novo trabalho como desenvolvedor de jogos. Ele é grato à Alemanha por ter emitido o visto e ao Cazaquistão por ter permitido que emigrasse. Apesar dos riscos para sua família, ele decidiu tornar pública sua história de deserção, para que outros também tenham a chance de escapar dessa guerra sangrenta.

“Digo a todos os desertores, a todos os que estão na frente de batalha e estão desesperados: Tudo é possível. Não é preciso lutar e agir contra sua consciência. Vocês podem se recusar a participar desses crimes.”

Fonte: DW Brasil