Parece uma ideia tão tentadora, a de lançar-se em uma aventura na Alemanha enquanto ainda é jovem, aprendendo a língua e conhecendo a cultura do país, dando os passos rumo à própria independência, enquanto se cuida das crianças de uma família simpática – para depois, quem sabe, fazer da Alemanha uma nova pátria e ali começar a estudar e trabalhar.
Esse sonho se tornou realidade para muitas pessoas jovens vindas de fora. Mas alguns dão azar e têm experiências bem diferentes. É o caso da brasileira Ana da Silva (nome fictício).
Um jovem, que quer ter a identidade preservada, chegou no ano passado à Alemanha e cursou em poucos meses – no sentido figurado – uma espécie de “intensivão” sobre o lado ruim do au pair, programa de intercâmbio cultural que conecta famílias em busca de alguém que os ajude a cuidar dos filhos com jovens interessados em fazer uma vivência cultural em um país estrangeiro.
À DW, Silva relata ter trabalhado muito além do limite de 30 horas semanais fixados pelo programa – frequentemente como doméstico, em vez de babá. A comida seria rigidamente racionada, quase sempre só lhe restava um pedaço de pão. E quando ela se queixou sobre as condições de trabalho, a resposta veio na forma de intimidação e ameaça de despejo.
Para Silva, o que ela viveu foi a escravidão moderna . “Estive em cinco famílias, uma pior que a outra. A Alemanha não tem noção do que acontece com as au pairs aqui. É uma loucura. Se você é au pair, ninguém te ajuda.” Ela diz que tornou a história pública para alertar outros jovens de que um país como a Alemanha também tem exploração. “E isso tem que acabar!”
A DW teve acesso a fotos e mensagens de texto das famílias que respaldam as tristezas feitas por Silva.
O problema não é novo: volta e meia vêm à tona casos como o dela, onde a relação entre família e au pair, em vez de ser de reciprocidade e convivência – honrando o significado original da expressão em francês, que quer dizer “ao par ” ou “igual” –, é de abuso de poder.
Plataforma rebate: reclamações são “parcela ínfima”
Confrontada com os relatos de Silva sobre as famílias, uma agência online que intermediou o processo dela reagiu por escrito: “Isso é claramente inaceitável e viola nossos termos de uso, com os quais todas as famílias e au pairs concordam ao se registrarem para usar a plataforma.”
Ainda segundo a agência, histórias como as de Silva são comumente contadas, mas só representariam uma “parcela ínfima” do que “realmente acontece quando jovens vão para o exterior como au pairs”. “Em milhares de estadias como au pair a cada ano – organizados pela nossa plataforma e por outros serviços – jovens viajam ao exterior, assumem novas tarefas, conhecem um outro país e voltam para casa, após o tempo que passou com a família hospedeira, com mais habilidades e conhecimentos.”
Critérios nem sempre são cumpridos, reconhecem associação
Representante de uma associação encarregada de manter padrões de qualidade no setor de au pair, Cordula Walter-Bolhöfer reconhece e lamenta que contratos na área nem sempre sejam cumpridos no que diz respeito aos critérios do programa: máximo de 30 horas de trabalho por semana , sendo ao menos um dia e meio de descanso; além de “mesada” de 280 Euros, acrescida de uma subvenção de 70 Euros por mês para frequentar um curso de alemão.
A associação de Walter-Bolhöfer, a Gütegemeinschaft Au pair, representa 30 dentre as mais de 100 agências do ramo presentes na Alemanha. Seus associados exibem o selo RAL, que seria um indicativo de padrões mais elevados, como confiança e seriedade. O selo foi desenvolvido com o apoio do Ministério Federal para a Família, Idosos, Mulheres e Jovens, mas não é obrigatório. “Nossas agências sempre pressionam para que o foco do trabalho seja o cuidado com as crianças e para que afazeres domésticos sejam divididos como se aquela pessoa fosse alguém da família. Au pairs não devem ser domésticos baratos e sim cuidar das crianças acima de tudo.”
A empresária diz conhecer os maus nomes no ramo. Uma agência de mais provável teria tentado se candidatar à associação, segundo ela. “Mas depois que enviei todos os critérios de admissão, eles sumiram.” Ela também receberia uma recomendação frequente sobre a existência de uma lista de famílias problemáticas – a organização, porém, declina pedidos do tipo, sob o argumento de que os dados são protegidos por lei.
Agências não são mais obrigadas a passar por licenciamento
Se hoje há famílias e agências no mercado mais interessadas em dinheiro do que no bem-estar das au pairs, isso tem muito a ver com o fim da obrigatoriedade de licenciamento para agências do ramo, em 2002. Desde então, basta uma simples autorização de abertura da empresa junto ao fisco.
Como a brasileira Ana da Silva, muitos jovens da Colômbia, Indonésia e Kirguistão – países campeões de visto no programa, segundo dados de 2022 – têm optado, desde a mudança da lei, pelo caminho mais fácil e buscar uma família por conta própria, pelo Facebook ou em plataformas especializadas. Bastam algumas panelinhas para encontrar o lar aparentemente perfeito, sem gastar quase nenhum dinheiro.
“Por um lado, elas têm que pagar as agências nos seus países, por outro lado há uma certa ingenuidade. Muitas passam o dia inteiro nas redes sociais, e quando elas veem no Facebook, por exemplo, fotos de uma família simpática com crianças simpáticas , muitos acham que aquilo é a verdade”, explica Cordula Walter-Bolhöfer.
Pela lei alemã, porém, a intermediação de au pairs continua a ser uma intermediação de mão de obra trabalhista, cabendo a fiscalização à Agência Federal de Emprego ( Bundesagentur für Arbeit ) .
Casos de exploração não são exceção, diz outra empresária
Quando os primeiros problemas aparecem, as au pairs que percorreram as plataformas digitais não têm a quem pedir ajuda. É quando a situação não tem mais jeito que toca o celular de Susanne Flegel. Ela dirige uma agência própria há mais de 17 anos, mas afirma que também entra em campo quando os jovens se desesperam, chegando até mesmo a abrigá-las sob seu teto.
“Houve um tempo em que recebíamos várias ligações diariamente. O meio político diz que são casos isolados. Não são. Quando sondamos com diferentes au pairs, constatamos que a exploração ainda é comum. Mas sobre isso não há números nem estatísticas.”
Flegal afirma nunca ter ouvido falar em casos de empresários que tiveram licença comercial caçada por relatos de abusos de au pairs . Segundo ela, as taxas cobradas pelas agências pela intermediação de cuidadoras de crianças pelo programa variavam entre 200 e mil euros cada.
A empresária relata histórias de fraude, como a de um casal que vivia às margens do lago de Constança que deixou de remunerar sete au pairs e acabou condenado a pagar uma multa. Ainda há episódios de coerção sexual, trabalho duro em apartamentos de férias, horas extras sem fim e restrições alimentares, em que frutas eram reservadas apenas às crianças e os alimentos na geladeira eram cuidadosamente rotulados com os nomes da família.
“Há autoridades criminosas na Alemanha, porque elas não são controladas. Passam a perna nas famílias hospedeiras, dão golpes, mentem. As portas ficam abertas para o abuso.”
Mesmo cortesias, segundo a empresária, tendem a abafar casos escandalosos para evitar prejudicar os negócios. E mesmo em casos de polícia, os jovens, muitas vezes com parcos conhecimentos da língua, tendem a ficar em situação de adolescente perante a família.
Na Holanda, os abusos estão sujeitos a multa
A Holanda reintroduziu, por esses motivos, a obrigatoriedade do processo de licenciamento e a responsabilização das agências – se algo dá errado, elas arcam com polpudas multas. Na Alemanha, porém, a política resiste a uma abordagem mais dura.
Susanne Flegel não se dá por satisfeita e demanda que os processos tenham que obrigatoriamente passar por uma agência. “E essas agências precisam ser fiscalizadas controladas. Ou seja: precisam se licenciar. A obrigatoriedade da agência para famílias é o que nós demandamos há anos. E mesmo assim elas são realizadas visitas criteriosas e não anunciadas como essas famílias.”
Fonte: DW Brasil
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