Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se encontrar em Paris com seu homólogo francês, Emmanuel Macron, na verdade o petista estará fazendo uma visita entre vizinhos. O maior país da América do Sul tem fronteira ao norte com o departamento ultramarino Guiana Francesa. A ligação geográfica, mas também experiências históricas, são um dos motivos para uma simpatia com a França por parte de muitos brasileiros.
Em 1825, a França foi um dos primeiros Estados europeus a reconhecerem a independência do Brasil, o qual, por sua vez, no século 20 lutou ao lado dos franceses nas duas guerras mundiais. O Brasil é o país da América do Sul com que Paris mantém as relações mais estreitas.
Também em sua recente ascensão a potência regional dominante, o Brasil contou com o respaldo da França. Em 2000, esta legou à Marinha brasileira seus porta-aviões descartados, e poucos anos mais tarde assinou um acordo para a fabricação de uma nova geração de submarinos.
O primeiro exemplar da classe Scorpène francesa entrou em operação no terceiro trimestre de 2022. Até o fim da década, o Brasil pretende construir, também com apoio francês, o seu primeiro submarino nuclear.
No entanto, de 2019 a 2022, durante a presidência de Jair Bolsonaro, as décadas de boas relações entre os dois países sofreram uma crise. Macron tomou o desmatamento amazônico, sancionado pelo político de extrema direita, como ensejo para bloquear o acordo de livre-comércio entre a União Europeia e o Mercosul. Por sua vez, Bolsonaro reagiu no Facebook zombando da esposa do presidente francês, Brigitte.
Europa quer estabilizar ordem mundial, Brasil quer mudá-la
Quando, recém-eleito, Lula viajou pela Europa em abril, ele ostensivamente passou ao largo de Paris, Bruxelas e Berlim. Agora, com a recepção no Palácio do Eliseu, nesta quinta-feira (22/06), ele e Macron celebram um recomeço. Não há animosidades pessoais entre ambos os chefes de Estado, seus contatos são descritos como bem amigáveis, e o ex-sindicalista até mesmo se empenhou pela reeleição do francês em 2022.
Em termos de conteúdo, contudo, há grandes diferenças em temas centrais. “É preciso reconhecer, na Europa, que o Brasil e a UE têm perspectivas geopolíticas diversas”, adverte o politólogo e especialista em América Latina Peter Birle, atualmente atuante no Brasil.
“A Europa, no fim das contas, quer estabilizar a ordem mundial existente. O Brasil quer modificá-la – não fundamentalmente, mas de modo a ter mais influência. E, para tal, aproveita todas as possibilidades.”
Apesar de ter condenado na Assembleia Geral das Nações Unidas a agressão militar da Rússia contra a Ucrânia, para Brasília está fora de questão uma ruptura com Moscou ou Pequim. Pelo contrário: por diversas vezes Lula chegou a declarar que Rússia e Ucrânia seriam igualmente culpadas pela guerra.
O presidente rejeita a política europeia de sanções contra Moscou. Quando, no início de 2023, no Brasil, o chanceler federal alemão, Olaf Scholz, apelou para que o país enviasse munição para os tanques alemães em ação na Ucrânia, Lula rechaçou a hipótese.
Ao contrário dos europeus, para os brasileiros a guerra na Ucrânia não constitui uma mudança de paradigma, e sim mais um conflito internacional, afirma o cientista político Birle, que não vê “nenhum indício de que essa postura possa mudar”. Lula almeja, antes, um papel mediador entre as duas partes em guerra, o que porém atualmente não parece realista.
Momento de ouro para o Brasil
Entretanto, a Ucrânia não é o único tema em que é difícil uma aproximação entre a França e o Brasil. Também o acordo UE-Mercosul, para a formação da maior zona de livre-comércio do mundo, é foco de conflito. Desde 2019 as negociações estão congeladas, porém com a transferência de poder de Bolsonaro para Lula, cresce no bloco europeu a pressão por avanços nas conversas em curso.
“O senhor voltou a situar o Brasil onde ele deve estar, como global player, como líder do mundo democrático”, louvou a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, no começo de junho, durante sua viagem pela América Latina.
Brasília resiste a um protocolo adicional contendo exigências ambientais mais rigorosas. Porém, no confronto com os europeus, Lula prefere enfatizar os interesses maiores: “A premissa que deve existir entre parceiros estratégicos é a da confiança mútua e não de desconfiança e sanções.” Até agora, o projeto do presidente de proteção da Amazônia tem fracassado no Congresso dominado por bolsonaristas.
Lula, que já em seu primeiro mandato, há 20 anos, empenhou-se com afinco para posicionar o país como global player, o vê agora fortalecido pelos acontecimentos mais recentes. Como, pelo menos no médio prazo, a Rússia está descartada como fornecedora de energia para a Europa, e a UE procura se tornar menos dependente da China, a potência latino-americana ganha um papel decisivo.
Com 22 milhões de toneladas, o Brasil dispõe da segunda maior reserva de terras raras no mundo, além de possuir condições geográficas e climáticas ideais para a produção de hidrogênio verde. E está até interessado em aprofundar os laços com a Europa. Mas a China, atualmente sua principal parceira comercial, oferece acordos bilaterais com condições bem menos rígidas.
Recomeço franco-brasileiro com percalços
Enquanto o chanceler federal alemão respalda o desejo da Comissão Europeia de um rápido fechamento do acordo UE-Mercosul, Macron tem que agir com mais cautela nesse ponto: na França, há anos a resistência ao pacto é ferrenha. Numa resolução ainda antes da visita de Lula, a Assembleia Nacional francesa urgiu o governo a negar seu aval.
Por trás da crítica dos parlamentares a padrões ecológicos insatisfatórios está, acima de tudo, a apreensão dos agricultores franceses quanto a uma concorrência crescente por parte da América do Sul.
Neste caso, portanto, o desejo de Macron, de não negligenciar nem mesmo os países do Sul Global que se opõem ao isolamento da Rússia, entra em choque com as realidades da política interna. O recomeço franco-brasileiro ainda tem alguns obstáculos a vencer.
Fonte: DW Brasil