Casa da Roça: arrancada do Carnaval de São Luís pelo esquecimento

No clássico O Mágico de Oz (1939), a aventura da protagonista Dorothy Gale começa com o voo de casebre da menina rumo a uma folia colorida e musical, na terra encantada do título do filme.

O Carnaval tradicional de São Luís não a deixa muito diferente de Oz: colorida, estampada, reluzente e espalhafatosa.

Se não há munchkins pelas ruas, a fantasia do Maranhão tem os fofões.

E por anos, um casebre viajante também foi símbolo presente desse imaginário, percorrendo ruas e arrastando foliões ludovicenses: a Casa da Roça.

“Era mágico”, lembra o músico e ativista cultural Wanderson Silva, que cresceu em meio aos desfiles da alegoria. 

“Ficava aguardando chegar o período carnavalesco. Uma das lembranças que tenho é a Casa retornando das apresentações: o bairro Radional em silêncio e, ao longe, se escutava o ecoar dos tambores de crioula”, conta o músico. 

“Já sabíamos: ‘a Casa da Roça está chegando’”.

A Casa, ou Casinha da Roça – conhecida “forma carinhosa” de chamá-la, detalha Wanderson – foi uma alegoria de rua criada em 1946, quando um grupo de amigos teve a ideia de sair no Carnaval representando um casebre típico do interior do Maranhão, nas costas de um caminhão.

O principal intuito era representar a vida rural no estado. 

“Era toda feita de pindoba [espécie de palmeira] com personagens trabalhando na farinha, com papagaio na janela, rede na varanda, panelas cozinhando, comidas típicas como cuxá, caruru, peixe secos, caranguejo, farofa e peixe frito”, descreve o jornalista cultural Joel Jacinto.

A alegoria também recriava uma cozinha do interior, da qual senhoras distribuíam quitutes ao público, como o caroço do coco babaçu.

O núcleo da Casa era o Tambor de Crioula – expressão símbolo do Maranhão que, através dessa brincadeira, o Carnaval de São Luís dividia com o São João do Estado. Também mais conhecidas do período junino, as índias faziam parte da alegoria.

Na fantasia de Wanderson, um dos magos era o Sr. Henrique – um dos criadores da Casinha, também conhecido como Sr. Elpídio e vizinho seu, na época.

“[Eu] ficava observando a montagem [da Casa] e brincando dentro, quando ela ficava pronta e estacionada na porta da casa do Sr. Henrique”, recorda o músico.

Magia desfeita

Em fevereiro de 1987, a Casinha da Roça já celebrava seus 40 anos de tradição em um desfile na Praça Deodoro – então principal palco da folia da capital maranhense. (mais após o vídeo)

Na entrevista ao repórter José Raimundo Rodrigues, o Sr. Elpídio (assim creditado e presidente da alegoria) fez apelo trazendo uma triste previsão.

“Talvez a brincadeira não vá participar por muitos anos do Carnaval de São Luís”, afirmou Elpídio na entrevista a Rodrigues. 

“As dificuldades são muitas, os gastos são demais. Eu gostaria que um órgão competente me ajudasse a fazer uma brincadeira que mostrasse o serviço do caboco no campo, como ele faz farinha… Mas não tenho condições”, desabafou o presidente.

Não havendo mudança na situação relatada por Elpídio, a profecia se cumpriu. 

Em relação ao apelo do carnavalesco, Wanderson Silva destaca que o custo ainda “não era tão alto” para o poder público, se comparado a “trazer grandes shows para nosso carnaval”.

Para o músico que viveu a brincadeira, o abandono de manifestações como a Casinha da Roça pela gestão pública é crime.

“Proteger, observar, e realizar a manutenção da nossa cultura tradicional é dever dos gestores e não um favor”, ressalta o músico. “Por isso, devem responder por negligência ao deixar acabar uma tradição como a Casa.”

Presidente da Favela do Samba, o professor Euclides Moreira Neto ressalta o potencial econômico das tradições carnavalescas locais. 

“É um absurdo [o fim da Casa da Roça]. Temos uma variedade gigantesca e diversificada de manifestações no ciclo carnavalesco, o que precisa ser melhor investido. Isto geraria emprego e renda, além de melhorar a autoestima local. Não pode ser ignorado”, alerta o professor Euclides.

Para o jornalista Joel Jacinto, o fim da Casa da Roça é parte de um desmonte de tradições – em particular, das que fazem a história da capital maranhense.

“Ao se desvalorizar esta e outras brincadeiras do período colonial de São Luís – ou cordões [carnavalescos] como o Fandango – se faz um tipo de afogamento da cultura”, avalia Jacinto.

Se décadas se passaram e a Casa da Roça sucumbiu ao esquecimento, a luta prevaleceu.

Similar a Elpídio, o produtor Zeca da Cultura batalha há anos pela maior valorização da gestão pública a manifestações culturais deixadas de lado – no caso de Zeca, a Dança Portuguesa.

“A tendência é a decadência dessas manifestações. Vejo que é falta de sensibilidade do poder público. Em termos de Carnaval, tradições como a Casinha da Roça e a Tribo de Índios não são mais permanentes”, lamenta Zeca.

Magia reerguida – e mais lutas

Em 1993, o produtor cultural Lázaro Pereira – o Lazico – teve a ideia de reviver a tradição da Casa da Roça. Como Wanderson, Lázaro foi uma criança que a viu passar nas ruas. 

Motivado pela memória e incomodado com a prioridade dada aos circuitos carnavalescos de trio em São Luís, o produtor criou a Casinha Tijupá em 1993, bem ao moldes da alegoria original. Outra casinha da roça reerguida é a Tapera, montada pelo percussionista Erivaldo Gomes.

“A Tijupá retrata os costumes da zona rural: o tipo de habitação, as frutas extraídas do mato, as colheitas do milho e da mandioca. Adereços e artesanatos como abano e cofo, peças utilitárias. Ela nasceu da necessidade de retratar o costume do povo maranhense”, detalha Lázaro.

Porém, reerguer uma alegoria como a Casa da Roça também significou enfrentar as mesmas dificuldades do passado. 

Em 2018, o Tijupá ficou de fora do Carnaval de São Luís por falta de verbas. Uma única apresentação – proposta pelo Governo do Estado – acabou recusada por Lázaro devido ao valor, que não cobria custos como as fantasias ou o aluguel do caminhão.

“[A alegoria] exige muita dedicação e trabalho por depender de uma cadeia produtiva – desde a extração da palha ou matéria-prima à apresentação na passarela. Isso também requer um orçamento”, explica Lázaro.

Sucessora da Casa da Roça, a Casinha Tijupá completa 30 anos de criação em 2023. Porém, Lázaro lamenta a possibilidade de que o aniversário passe em branco.

“Não sei se terei condições, pois a [Secretaria de Estado da Cultura] ainda não liberou a programação. Estamos no escuro, sem saber quantas apresentações teremos ou sobre orçamento. Estou em dúvida se coloco ou não [a Casinha Tijupá para desfilar]”, diz Lázaro.

Em reposta ao Difusora ON, a Secretaria de Estado da Cultura (Secma) ressaltou em nota que “sempre pautou com máxima importância as manifestações culturais do estado, e valoriza a tradição e o significado que elas têm para a história e para a cultura”.

“Com as alegorias tipo Casinha da Roça, não seria diferente. Elas fazem, sempre fizeram e farão parte da programação do Carnaval do Maranhão.
Assim como outras manifestações, elas também irão ser chamadas pela equipe de programação, para assim, fazer parte desta que é a maior festa popular do país
“.

Baia, baia, baiador 

Hoje ativista cultural e percussionista, Wanderson Silva conheceu a musicalidade dentro da Casa da Roça – onde aprendeu as primeiras batidas do tambor de crioula. 

“Lembro com muito carinho do Sr. Pereira, mestre de tambor. Um dia, ele estava na fogueira afinando os tambores e me perguntou se eu queria aprender. Prontamente, sentei no meião e comecei a aprender sua afinação e depois seu toque”, recorda.

A arte de Wanderson Silva exerce o legado da Casa na cultura popular maranhense – a brincadeira é creditada pelo músico como forte influência em seu trabalho.

“Através da escuta, aprendi várias toadas que ficaram na memória. Não só na minha, mas de muitas crianças da época”, conclui Wanderson sobre a Casinha da Roça – firme em lembrança e levada do carnaval de rua de São Luís pelos ventos do esquecimento.

Pesquisa, reportagem e edição: José Vítor

Agradecimentos especiais: Zema Ribeiro | Marise Farias | Peterson Bruno

Tags: #memória, #TBT, alegoria carnavalesca, ativismo, ativismo cultural, carnaval, Carnaval 2023, Carnaval de Rua, Carnaval de São Luís, Casinha Tapera, Casinha Tijupá, desfile carnavalesco, desfile de carnaval, Euclides Moreira Neto, Manifestação cultural, período carnavalesco, Secma, Secretaria de Estado da Cultura, Secretaria Municipal de Cultura, Secult, Tijupá